“Não devolve no caixa, a gorjeta é pra você, eles* já têm
muito dinheiro” Disse o cliente sem saber que eu já sabia que ao final no dia a
minha caixa fecharia no negativo. Com exatamente menos seis euros e um centavo.
Sem a generosa doação do morador de rua seriam menos seis euros e trinta e seis
centavos. Eu peço desculpas, digo que não posso imaginar em que momento isso
aconteceu. “No começo é normal se confundir, pode ser que com as luvas você
perdeu a sensibilidade e deu para alguém duas notas ao invés de uma“ disse o
gerente. Há uma tolerância de cinco euros, depois disso o que falta é
descontado na fonte. Assinei dois protocolos de contagem e a dedução de um euro
e um centavo do meu salário.
Uma rede de supermercados popular: nem a maior nem a menor
no centro de uma cidade nem grande nem pequena. No meu crachá leio o nome do
supermercado e meu nome. Antes disso como um título na diagonal e em letra
cursiva está escrito “time“. Piada sem graça. Os donos da rede de supermercado
são anônimos. Como o vírus: Invisíveis.
Nos fundos entre os vestiários, banheiros e quarto de
limpeza tem uma cozinha/sala de convivência. Em função da pandemia só é
permitido que duas pessoas por vez ali se encontrem. Na sala de convivência se
fuma frente à cartazes de campanhas de prevenção e promoção de saúde. Como sentar, como carregar peso, como e
quando lavar as mãos. É assim que eles* se protegem. Eles, os detentores dos
meios de produção, fizeram então sua parte.
Seus cartazes e medidas preventivas são feitos às pressas,
frágeis, feios e gritam pelos cantos que descolam: “você não importa”. Eu me
sento em frente ao caixa em uma cabine improvisada, de uniforme, com o
sentimento de insignificância e com a consciência de que a minha força de
trabalho mais valia. Depois do primeiro dia eu disse para mim mesma que não
gastaria nada do meu salário naquele mercado.
No plano semanal meu horário acaba quando o mercado fecha, às 22 horas.
O caixa fecha quando o último cliente sai. Falta dinheiro no meu caixa, nós
contamos duas vezes e eu chego em casa às 23:10.
No segundo dia o gerente me diz às 22:15 que “Se você não
quiser levar nada, pode fechar o caixa“. Eu levo sim um saco de batatas. Na
saída eu percebo que ele está furado. Assim como o encosto da cadeira do meu
caixa está quebrado e o capitalismo e suas instituicoes estão falidas. Eu levo
o saco de batatas porque eu moro no terceiro andar, assim eu teria menos peso
pra subir na próxima compra e se eu já estou no mercado eu economizo de me
expor à uma possível contaminacão junto às batatas do próximo mercado onde eu
faria minhas compras.
Carrego o saco com o furo para cima e junto ao meu corpo
porque minhas costas doem e porque me sinto sozinha e tenho medo. Eu moro
perto, levei para o trabalho somente minhas chaves e uma nota de cinco (na área
de funcionários não tem sinal de celular). Espontanemente pensei em comprar um
saco de batatas e um de mexerica, mas os dois somariam cinco e trinta e três. O
gerente precisou estornar as mexericas.
Volto caminhando com minhas batatas procurando argumentos
para contrabalancear minhas dissonâncias cognitivas. Depois eu penso nas
pessoas que encontrei, nos pequenos diálogos, nas dores no corpo e penso que eu
gosto de trabalhar. Eu gosto de sorrir por trás da minha máscara de pano e
desejar para as pessoas um bom final de semana. Eu imagino que amar a vida me
protege e que se eu sei que não sou melhor do que qualquer outro trabalhador
que precisa sair para trabalhar eu posso também morrer, porque a minha alma
está em paz.
Eu amo a vida, mas também gosto de pensar que morrer não é
ruim. Assim o meu medo me deixa ir. De luvas e máscaras eu realizo experimentos
sociais e contagio pessoas com “bom dia” e induzo medo em cidadãos
despreocupados. Como uma agente infiltrada, pedagoga desempregada, um coração revolucionário.
Eu fantasio bastante no caminho para casa.
A minha janela dá para um pátio, eu vejo somente a janela
dos outros vizinhos. Apesar dos meus argumentos profundos para contrabalancear
as dissonâncias cognitivas, eu chego em casa e tiro meu uniforme em frente a
máquina de lavar. O uniforme no chão é uma imagem de paz. Tomo banho com nojo
como se eu tivesse feito algo errado. Eu deito na cama e penso nas pessoas das
fotos dos currículos na mesa do gerente, que queriam estar no meu lugar. Penso
na menina de quatro anos que ganhou uma revista de unicórnio enquanto seu pai
comprava duas garrafas de vodka quando já era hora dela estar na cama. Penso no
morador de rua que me deu gorjeta, penso nos centavos que vão faltar amanhã no
meu caixa, nos produtos novos que não estarão cadastrados no sistema e durmo e
sonho com a outra moradora de rua que se urinou em frente ao caixa.
Um homem refugiado me perguntou ontem “Até quando? Até
quando doença?“. Eu apontei para minha cicatriz de BCG e disse “Não sei... Talvez
até nós termos uma va ci na“. Ele abriu os olhos espantado, depois sorriu e me
perguntou entusiasmado “Você já tomou?". Eu disse que não e respondi
olhando os outros que esperavam na fila que “talvez em outubro, ou no ano que
vem…”. O seu otimismo fez o meu coração doer. Depois ele foi embora meio
desapontado, mas vai voltar amanhã. Ele gosta de falar comigo. Eu gosto de
falar com ele.