sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014


I

As vezes dá uma vontade de ter TV, mas tem tanta coisa antes pra comprar e em casa não tem espaço... Chegar em casa e ligar o computador é uma merda, sempre chato...  

Eu subi as escadas, abri a porta, encostei, abri a geladeira, fechei, vê? Esse é meu espaço, minha casa, minha porta, minha geladeira, vê?  As coisas melhoram pra gente, nem sempre foi assim...

A vista do apartamento não foi critério quando escolhi, só pensei nisso depois de visitar um amigo que morava no alto, São Paulo é uma merda, mas do alto - naquele dia - ficou legal...

Um dia, tinha um homem de outro primeiro andar do outro lado da rua, e ele me observava sem camisa, eu tive medo, mas nunca mais o vi.

A minha janela fica sempre aberta, pra ninguém saber quando estou, quando saio ou quando chego, na dúvida sempre estou - esperando - com uma faca - já cravada no peito. Oi?

Só tem uma janela, vê? As coisas poderiam estar melhores, mas é assim que elas são, só tem uma janela, mas quando chove não tem nada que molhe na frente dela e o piso é frio, aqui é calor e logo seca. Eu nunca fecho a janela.

Essa noite eu sonhei que matava um homem, eu sonhei que com uma frigideira eu acertava a cabeça dele, mas antes disso dizia pra Deus ou para ninguém: eu vou matar esse homem, eu vou matar esse homem, eu vou matar esse homem”.

Não era um estuprador, não parecia ser, mas era muito maior que eu, e mentia, era dissimulado, eu sabia, estava nos lugares antes que eu, eu o via em uma piscina vazia num céu roxo.

Eu ouvi um estalo, tem um passarinho amarelo e gordo na minha janela, só a barriga é amarela.

Eu odeio humoristas, tem leite derramado no fogão, eu que cuido dele,  limpo de vez em quando, mas quando limpo fica com aspecto bastante novo, ainda está bem novo.

Eu queria ser completamente invisível, porque ser um pouco invisível é frustrante. Se eu tivesse uma televisão... Eu não acredito em nada, não sei o que aconteceu comigo, antes eu conseguia assistir, eu queria mais do que ter uma televisão conseguir assistir. Na minha cabeça as histórias ainda se misturam um pouco, mas lembro de muita coisa do que vi na TV em restaurante e padaria, parece que ela me sequestra e me fere o cérebro, eu não desligo, está sempre errado, é sempre muito ruim, é um lixo.

Pensei que estava completando a primeira página, mas era a segunda. Esse ano eu faço vinte anos, é menos do que a maioria das pessoas que convivem comigo, o que me faz pensar que as coisas poderiam estar piores.

Quando eu tinha 14 anos eu  me observei bem na beira do lago da casa de férias do meu pai, ficava revezando entre meu reflexo na água, meus braços e pernas em roupas coloridas e as páginas, eu estava lendo Lolita e em cada linha pensava que estava passando muito rápido, li o livro naquela semana, em 5 dias, e o tempo nunca mais passou do mesmo jeito. “Isso é livro pra gente da sua idade?”... Não, não era, mas falar não adianta, deveria ter tomado o livro... Depois disso fazer aniversário foi sempre uma experiência de medo, com os anos, nada se realizou, os desejos quase os mesmos, cantar sempre entre eles, nada mudou, eu continuo meio muda e meio invisível, as vezes as pessoas me dão 15 anos ainda, verdade, o segredo é não beber, não fumar e estar cada vez mais magra.
                    
Faz tempo, achei que estaria completando a terceira página, mas era só a segunda,  e nada de café para mim, não me faz bem, vê que puta que o pariu? Também tenho alergia à gatinhos, livros antigos e não ficaria bem de cabelo curto. Oh, mundo cruel.

II

Aqui é assim, tudo é medo, parece amor, mas é medo, só reparar bem… Aqui é assim. Cada lugar é de um jeito, aqui é assim… Por isso que eu gosto de fugir, pra me convencer que mesmo assim eu só sei ser aqui.

O mais importante é continuar, mais do que sonhar, sonhar é uma grande merda na verdade… O que eu precisava era que o tempo parasse até tudo começar a dar certo, mas talvez, mesmo tudo dando certo continue em mim essa sensação de que estou perdendo o tempo do relógio no quadro derretendo…

Quando mudei, faz seis meses, comprei um despertador, ele nunca funcionou, mas eu rasguei a caixa quando abri. Não consegui trocar, coloquei a pilha dele no vibrador, minimizando os danos.

O despertador está aqui do lado na cabeceira, deveria saber desde sempre que não poderia confiar nele. Tudo que comprei naquele dia foram expectativas frustradas. Junto do despertador comprei duas velas, mas elas tinham muito menos aroma do que o esperado, e não criaram o efeito de iluminação que eu queria.

Eu moro no primeiro andar e tem um poste de luz exatamente na minha janela. Aqui sempre fica tudo muito claro.

No caminho do trabalho pra casa, apesar de morar em São Paulo, encontro sempre muitas pessoas conhecidas, por quem não tenho nenhum afeto, por isso me incomoda essa obrigaçao de comprimenta-las.

Tenho evitado conversar pessoalmente no trabalho.

Duas vezes por semana eu me encontro com duas meninas a noite, depois de trabalhar  nós dançamos, as vezes trazemos textos, escrevemos textos, personagens, falamos das nossas vidas, e as vezes só dançamos, sem falar nada, desenhamos círculos no chão de madeira, correndo, correndo, correndo trocando o lugar dos pés, eu gosto de desenhar no espaço daquela sala, estar lá é como estar de olhos fechados, como se meu corpo fosse de giz, e eu nunca saio dali e ali nunca sai de mim.

Eu passei muito tempo dentro de um saco de pão, com a cabeça lá, mas eu não sabia, eu não me via. Eu lembro de um desenho animado com um garoto que também vivia com um saco de pão na cabeça, mas não pensei que poderia acontecer comigo.

Um dia estávamos nós dois e outra mulher, então sem nenhum porque eu tirei o saco da minha cabeça, eu era muito mais bonita, meu rosto era muito mais cheio de cores, de vida, de tons de rosa, verde, dourado, castanho, laranja, azul de lágrima e eu peguei a cabeça dela e estourei na parede, e tudo ficou tão vermelho, você se foi e um amigo seu veio buscar tudo, tinha uma criança junto, fomos comer e você apareceu.

Ninguém falou como eu estava bem sem aquele saco na cabeça. Ninguém falou nada, só sobre o preço do almoço.

III

Eu não queria que fosse tudo para você, mas é, porque é com quem mais falo, então até quando estou falando sozinha, na verdade estou falando com você.

Quando eu chego em casa, em frente a cama tem uma parede metade de vidro metade de concreto, mas é um vidro que não deixa ver muito bem o que tem na frente, mas é um piano.

Eu entrei dentro dele e dormi lá, num dia de medo, não foi ruim, me fez lembrar do dia em que dormi na caixa d’agua da escola. Em todos os lugares onde estudei sempre foi um sonho passar uma noite ali.  Imaginava que a escola tinha vida de noite também, sonhava com aquele lugar sem ninguém, andar pelos corredores, sentir com que cheiro fica o ar ali quando não tem ninguém, com as luzes apagadas…

Uma vez eu pedi para ir ao banheiro, e não tinha ninguém no corredor, eu peguei uma pasta, das que ficavam na porta da sala com anotações sobre os alunos, enrolei e feito um coco enfiei na privada. Nunca descobriram que fui eu. Eles não gostavam muito de mim naquela escola. Era uma merda, mas as vezes a gente dançava e fazia teatro.
Pensando bem foi a pior escola que estudei, porque antes dessa tinha uma em que a gente dançava de verdade, só as meninas de collant, em um horário a parte durante a tarde, eu gostava do tanto de tempo que a gente perdia tentando abrir as pernas, era uma delícia.

A última escola tinha um grupo de teatro pra valer, e a penúltima não tinha nada mas tinha uma banheira. É claro que eu fiquei pelada e entrei. Fiz isso algumas vezes, mas um dia, eu pedi pra sair da aula de história e fui lá na banheira, e deu vontade de colocar tudo lá, cachorro quente, livros, eu deixei a secretária pelada desmaiada atrás da recepção e coloquei tudo que era dela na banheira, as roupas, esvaziei a bolsa.

Tinha baton, nota fiscal, gel lubrificante, carteira, cartão celular… Coloquei computador, tudo, Fanta uva, mijei…

Voltei pra aula, que terminou e em seguida fui embora, eu não gostava daquela escola.

IV

Aqui na rua de casa mora muita criança. Eu estava no banco da pracinha, e enquanto elas brincavam um menino me perguntou as horas, disse que queria saber se ainda dava tempo de ser o pegador. Que vontade de poder ficar.

Mas ser adulto é não poder ficar. Ele vai voltar pra brincar amanhã e depois de amanhã e eu amanhã e depois de amanhã vou trabalhar.

V

Meu trabalho é escrever, e as pessoas leem. Eu sou uma privilegiada. Elas não leem o que eu gosto de escrever, mas leem o que eu escrevo, as vezes não sabem que fui eu que escrevi. Eu poderia vislumbrar um emprego melhor, mas não.

As crianças aqui da rua estão cantando uma música e dando “geral” uns no outros, enfim, brincando de se bater. Quando eu era criança tínhamos muitas brincadeiras de se bater, e muitas músicas pra chamar uns aos outros de burro e cabeça de E.T.

As brincadeiras de se bater ficaram mais legais conforme eu crescia, na última escolar onde estudei, onde tinha o grupo de teatro pra valer, durante alguns meses, durou entre a gente uma brincadeira que se chamava “40 segundos sem perder a amizade”. Valia tudo, menos arrancar cabelo e bater no saco.

A adrenalina ali era diferente, todos do grupo eram gays, e o gênero não era uma característica que representava bem o tamanho ou a força, éramos corpos bem variados e todo mundo brigava com todo mundo. Apesar disso, apanhar dos meninos era ainda estranho, um pouco pesado pra mim, que vim de um “lar” de violência domestica. Eu gostava de brigar com as meninas, da pele delas na minha. Eu tinha um pouco de pena de bater, e também um pouco de medo de marcar alguém de maneira perigosa. 

VI

Em alguns momentos o cuidado se confunde com o ciúmes. Ele não tinha cuidado para não ter ciúmes, era o que eu sentia do meu pai. Acidentalmente, aos 14, ele viu um rapaz me enviar uma mensagem me chamando de oncinha. Eu tinha certeza que ele não iria falar nada sobre isso, nunca falou, mas depois disso tive a impressão de que ele tentava acariciar minhas coxas enquanto eu andava do lado dele no carro. Com o tempo ele trocou de carro, e não tinha mais um apoio para as mãos perto da coxa do passageiro, então tudo isso passou. Só não passou mais rápido do que o namorado que me chamava de oncinha.

VII

Na maioria dos programas de adolescentes na TV, eles não tem mãe, ou a mãe não aparece. Porque mãe é chata na adolescência. A mulher no telefone reclamava para uma amiga que viu sua filha de braços cruzados na pracinha. Deixa a menina, é tão difícil ser ela, é difícil ter os dedos magros, a pele escura e não ser uma adolescente que se parece com as da TV, o beijo primeiro que demora para vir, o medo maior de se tocar, de se aceitar. Deixa a menina ficar na pracinha.

Tem gente ali que fuma maconha, mas ela não. Eu acho que ela vai ter um bom emprego sim, no futuro, vai ficar mais bonita. Se vai se embaraçar um dia com alguém pra valer, eu não sei, essa mãe repressora deixou ela muito tímida, mas talvez um dia ela perca o medo e a vergonha do cheiro da própria vagina…

VIII

Cheguei em casa e abri o computador. No começo do dia eu tinha cinquenta reais e agora na minha conta tem 2,72. São Paulo é uma merda.

Nos últimos anos quando eu visitava a casa de campo, meu pai tinha um abajur novo ainda embalado, com o tempo ele já não era mais novo, porém continuou embalado, meu pai nunca usou, pedi e ele me deu. Ele comprou pra ler de noite e não precisar levantar pra apagar a luz na hora de dormir, eu peguei o abajur para mesma finalidade, mas também nunca usei, uma serie de lâmpadas que tentei não serviram, outras eu nem lembrei de tentar… Quando encontrei uma lâmpada que servia, percebi que o fio era muito curto pra chegar na tomada.

Qualquer um que quisesse poderia entra aqui no apartamento, com uma escada simples subir, abrir a janela e entrar.

Qualquer um que cruzou comigo no caminho de volta do trabalho, mas nenhum deles se interessou em invadir minha casa... não até hoje.

Eu volto caminhando, e durante o horário de verão eu saio junto com o pôr do sol. As pessoas sempre param pra fotografar o céu em um ponto turístico com celular.

Eu tenho em casa uma escultura transparente de gelo, mas ela não cabe no congelador, fica na sala, na cama comigo... Ela não derrete. Eu tenho medo porque sei que é de gelo, parece rígido, mas é frágil. É a coisa mais linda que existe.

Tenho sempre muitas coisas pra fazer que podem ficar pra um pouco depois, meus amigos estão entre essas coisas.

Lá no escritório eu tenho que lembrar de fechar a cortina depois do expediente, por isso não costumo abrir. Hoje eu abri, e dancei, estava sozinha na sala, o que acontece com bastante frequência. Quando me vi dançando em frente a uma enorme parede de vidro de frente ao terminal rodoviário senti um segundo de vergonha, depois notei que eu era invisível. Dancei olhando para a rua, entre os computadores, com as pastas e papeis, deitei na mesa. Ninguém me olhou. Antes de sair enquanto desligava o computador eu fechei as cortinas.

IX

Queria trabalhar cantando, mas as vezes a voz não sai. As palavras ficam cercadas por intervalos de silêncios onde cabe o mundo inteiro.

As paredes dos prédios ficavam cada vez maiores, cada vez mais perto. Se alguém me ouviu não era eu, se me viram voar era um filme outro, de outro tempo. Por enquanto eu estou escrevendo poemas nos rodapés, eu sinto que em breve tudo estará no chão

Eu acho que estou aprendendo a voar com os ratos, porque ninguém me vê, aquele passarinho sorrindo, não era eu.

Aquela cerveja não era minha, e o mundo rodando eu assistia de longe, como em um filme outro. Eu queria cantar o mundo, mas tinha muito espaço entre as palavras...

Passava entre cada uma um trem inteiro, e ninguém ouviu, nem um pio. 

Eu não bebo nem fumo, porque não de nada nem de tudo. Isso deixa a realidade e as palavras inconfundivelmente reais e chatas.

X

Estava indo ao mercado, passei em frente a uma academia de lutas, entrei e fiquei observando 3 mulheres, elas eram diferentes, gostei de todas, tinham uma concentração extremamente excitante, e espancavam um saco de areia com tanta violência, tão rápido... Elas davam gemidos, e variavam o ritmo, todas com a barriga a mostra, a mais bonita das três era a mais violenta.

Do lado da academia tinha ainda uma floricultura. Eu adoro flores, principalmente com cores fortes, orquídeas e cravos vermelhos e roxo escuro.

Quando eu ia me mudar tinha pensado em uma decoração mórbida, com muitas flores, crisântemos e velas, mas só os móveis que foram da minha avó já deram um aspecto bastante mórbido.

A garota do saco de areia deve ter sempre hora marcada no salão pra fazer a sobrancelha. Ela não ia querer ser minha amiga. Paciência.

XI

Minha conta bancaria ainda tem 2,72. Hoje estou rasgando de ódio. É comum. 

Aos oito eu tinha um amigo de 17 anos, que tinha perdido a mãe, e morava com os tios, meus vizinhos. Ele juntava vários copos de requeijão, ou as vezes comprava copos e nós íamos a um terreno baldio, perto da nossa casa, um terreno todo cercado onde havia uma obra embargada e ele deixava eu observar ele estourar os copos na parede, sempre que estava com raiva. Gritávamos.

Ele tinha uma tatuagem feita com estilete, SC de Sheila Carvalho, sua maior inspiração.

Ele também tinha bastante ódio no coração. É ruim essa sensação de estar fora do seu lugar, vinha desde a maneira como os tios fechavam o pacote de bolacha à pressão na hora de escolher uma carreira, tudo o fazia se sentir mal, com medo do que ele era. 

Ele tinha muitos esmaltes, pintávamos pequenos caracóis cada um de uma cor, dávamos nomes a eles e os mantínhamos o quanto pudesse viver em uma caixa de sapato com terra e grama, chamávamos de Big Brother Caramujo.

Iniciou um curso de  farmácia, os tios aprovaram e ele viu alguma vantagem. Nunca se formou, mas acredito que adquiriu conhecimentos fundamentais para manter seu estilo de vida. Não tive mais nenhuma notícia.

XII

Quando estou com ódio eu começo a tremer, sinto frio na ponta dos dedos. O telefone toca, ignoro. Não tocou mais, grande merda, vai pro inferno então. Me deixa. 


XIII


São sempre muitos planos. Quando eu conheci a Tarsila foi em um restaurante na Zona Sul onde eu trabalhava. Ela não falava comigo, a primeira vez que eu ouvi sua voz ela disse "de laranja". Servi seu suco e assim começou nossa amizade. Não é um começo que revela muito sobre nossa relação, porém foi assim. Eu falava muito mais do que ela, e ela dava apenas pequenos comandos. Logo estava fazendo coisas que eu sugeria, no primeiro dia. Era seu aniversário de 3 anos. A mãe dela ficou muito surpresa, Tarsila não confiava em ninguém.

Eu tinha tantos problemas, mas parecia que não tinha nenhum quando eu olhava seus cabelos ,eram tão bonitos. Sua mãe era tão franca, parecia gostar mesmo de mim.

A segunda vez que nos encontramos foi no parque, eu estava estudando, ela me reconheceu, sua mãe teve vergonh,a mas mesmo assim me fez interromper o que eu estava fazendo, ela disse: " Oi, lembra da gente?".

Sim, eu me lembrava, sua mãe me convidou para um café, na semana seguinte.

XIII

Agora eu poderia terminar o que não consegui fazer no trabalho, é sexta a noite e meu prazo é a segunda... A comida não chega. É obvio que não vou fazer o que devo, o vibrador sumiu, foi a primeira vez que me masturbei sozinha, com as mãos, não foi difícil, acho que fui preguiçosa nos últimos anos.

No dia da formatura, eles iam voar de balão. Eu não fui convidada. Não foi por querer, mas naquele dia eu descobri que poderia voar, sozinha, correndo e batendo os braços. Tinha testado varias vezes, e queria muito te mostrar. Você estava na festa, eu cheguei na porta e vi os tantos balões amarrados num grande cesto.

Bati na porta, uma idiota atendeu, disse que ia te chamar, mas você não veio, ela não voltou, e a porta não abriu mais. De repente eu precisava da sua ajuda para voar, mas passou outro homem, e ele me ajudou. Nunca mais o vi. Fiquei um tempo voando, mas não queria mais que você me visse, sai das redondezas, com  o orgulho muito ferido

XIV


Fomos jantar. Comento coração de alcachofra, lembro que antes, com afeto e muita calma, comi camada por camada e ainda tive fome quando cheguei na minha parte favorita. Coloquei azeite e sal, beijei sua boca sem dente do siso, com os lábios molhados.

Voltamos de mãos dadas e você não parecia se incomodar comigo tirando suas camadas, para te comer o coração para sempre.

XV

O vibrador apareceu no meio da sapateira, misteriosamente. Não importa muito. Esse dias ao invés de dançar nós fomos nadar, de noite. Eram várias piscinas e só tinha a gente, eu não lembro muito bem dos pensamentos na minha cabeça, mas eu dizia para as meninas algo como "eu não vou conseguir..." e em seguida me afogava, elas me davam a mão. Eu levantava e acontecia de novo.

Algumas piscinas eram quadradas, retangulares, mas com uma pintura nos azulejos exatamente igual a da casa onde eu cresci, igual onde estava o homem que eu matei, em um céu muito azul e roxo escuro.

As meninas ficam melhor do que eu de maiô.

Sempre nadei muito bem, eu nado muito bem, mas não sei porque os afogamentos . Eles terminavam um segundo antes de eu morrer, eu pelo menos sentia assim quando via a mão morena da minha amiga, e agarrava com toda minha força, motivação e coragem, eu  seguia a mão dela. Esquece essa história de piscina, eu quero acordar.

XVI

Eu era mais uma das meninas daquela vitrine dando socos no saco de areia de short de ginástica, legal.

Eu fui para casa da Tarsila já imaginando o que sua mãe queria, uma babá. Por que não? 

Eu fiquei fazendo força para lembrar se já estive em uma casa tão grande e tão bonita, mas nunca... Sua mãe que abriu a porta, nada de empregada de uniforme, nada de mal gosto,.

Havia muitas plantas, quadros e paredes de vidro, também um cachorro muito lindo.

A mãe me disse que Tarsila não gostava de babá nenhuma, que não ficava com ninguém, nem com ela muito bem, porém ela percebeu que ao meu lado a menina ficava mais calma e amorosa.

O dinheiro era razoável. A mãe queria ficar fora por meio período, eu saberia muitas coisas pra ensinar, idiomas, música, os conteúdos da lição de casa... Por que não? Por que não?

De assessora de imprensa e bailarina, virei babá e lutadora de boxe. Com isso, percebi a arte de maneira muito mais clara, do que nas linguagens mais comuns. É claro que continuei escrevendo e dançando,  mas de repente, com essa mudança, tudo ficou muito na carne, a relação com aquela criança e cada soco que eu levava no rosto me encostavam de um jeito parecido, me atravessavam. 

De repente veio um excesso intenso de lucidez, trabalhando menos, muito tempo ocioso, dificuldade em ler, muito tempo pensando, ou sonhando, não sei se o que faço é sonho ou pensamento, mas me entrego a essa ação por horas. E passo sete dias comendo pão e olhando as paredes, o espelho, odiando tudo que é feito para não se passar pelo tédio. Chego em casa e o tempo dilata, quando não estou com a Tarsila, ou treinando na academia parece que eu sou outra coisa, uma boneca de algodão se desmanchando, e muito penetrável, muito sensível, leve, expandida, vazia, branca, clara e lúcida.

E invade uma vontade de apagar as luzes, de tampar os ouvidos, e receber as palavras e as imagens, sentar, deitar, tomar um chá com o sol e com o livro de poesias que li no metrô entre a Granja Julieta e o meu bairro, o Centro. O grande Centro psiquiátrico, a sala de psiquiatria a céu aberto de São Paulo, depois das 23 se parece com uma terra de zumbis, e minha figura, andando curva, sempre se encaixa bem.


XVII

Deitei para dormir, me virei, uma duas, três vezes, fiquei com medo, coloquei uma tesoura do lado da cama, fiquei escutando os passos dos vizinhos passando, subindo e descendo as escadas... Isso são horas em um domingo? Veio uma fome miserável, e quem vai sair pra comer no meio da cracolândia na madrugada de domingo?  Liguei para alguém que amo, amo sim, porque não? Porque nos conhecemos há 4 meses? Eu o amo sim, e liguei para ele e ele não atendeu. Eu acho de novo que nossa necessidade um do outro, não é a mesma, e eu conheço o tipo de relação que estabeleço com pessoas que só da vontade de ver uma vez por semana.  É, se fosse sempre fácil, se a gente sempre se gostasse igual... O que aconteceria? Será que isso acontece na vida das pessoas? Eu liguei e ele não atendeu. A fome miserável, estava deitava por uns 30 minutos depois de começar a sentir muita fome, pensei no que comi durante o dia, nada, bolo de tarde com a Tarsila. O telefone toca, tive certeza que era ele, mas não era, era um amigo meu, um grande amigo, um bom amigo, um amigo, que me dá atenção sincera quando está comigo. Contei-lhe da minha fome e ele se ofereceu para me buscar e me levar para comer. Ele e outros amigos acham que tudo que escreve é muito pornográfico, sendo que eles nunca leram os meus textos pornográficos, e agora que eu, logo eu meu Deus, trabalho com crianças, o que vai ser de mim se essas mães, ou se os irmãos pré-adolescentes lerem esse monte de putaria erótica que eu não acho erótica, mas que deixa todos meus amigos eréteis? Eles vão se masturbar pensando em mim? Vão me tratar como uma putinha achando que eu quero dar pra todos eles? Eu vou ser linchada? Vou ser demitida? Meu amigo disse que não queria me conhecer tão profundamente, e eu disse que não quero me relacionar de outra maneira com mais ninguém nunca mais. Será que ele entendeu que eu quero dar? Não era isso, acho que não, esse meu amigo é muito avançado, acho que ele só quer poupar esforço mental. Afinal, na vida é difícil mesmo se relacionar com profundidade com muitas pessoas