quarta-feira, 15 de julho de 2020

sábado, 9 de maio de 2020

Há vida depois da pandemia


Sim, haverá,

Mas para a criança refugiada que fez figuração no filme do Oscar;
para a mulher queniana desnutrida na foto da evangelista em projeto de neo-colonização;
e para o homem alcoolista que dormiu ontem na escadaria da Consolação,

nada vai mudar em consequência de nenhuma doença.

Falhamos, e se a poesia não nos salvou
se a guerra não conscientizou
ingenuo seria pensar 
que a pandemia vai nos educar.

Pro ser humano virar gente
falta o mundo acabar.

Não tem profecia, não tem energia, 
não tem enigma e nem mensagem.
A imagem na televisão 
confirma uma previsão.

Falhamos, a luta de classes não nos salvou,
nem o chá de cipó, nem o Bhagavad gita.
Falhamos em nossa existência.
Falhamos em sermos humanos.

Depois da Pandemia continua a mesma patifaria.
Cada morto em seu lugar.




quarta-feira, 6 de maio de 2020

À perdedora, as batatas.


“Não devolve no caixa, a gorjeta é pra você, eles* já têm muito dinheiro” Disse o cliente sem saber que eu já sabia que ao final no dia a minha caixa fecharia no negativo. Com exatamente menos seis euros e um centavo. Sem a generosa doação do morador de rua seriam menos seis euros e trinta e seis centavos. Eu peço desculpas, digo que não posso imaginar em que momento isso aconteceu. “No começo é normal se confundir, pode ser que com as luvas você perdeu a sensibilidade e deu para alguém duas notas ao invés de uma“ disse o gerente. Há uma tolerância de cinco euros, depois disso o que falta é descontado na fonte. Assinei dois protocolos de contagem e a dedução de um euro e um centavo do meu salário.

Uma rede de supermercados popular: nem a maior nem a menor no centro de uma cidade nem grande nem pequena. No meu crachá leio o nome do supermercado e meu nome. Antes disso como um título na diagonal e em letra cursiva está escrito “time“. Piada sem graça. Os donos da rede de supermercado são anônimos. Como o vírus: Invisíveis.

Nos fundos entre os vestiários, banheiros e quarto de limpeza tem uma cozinha/sala de convivência. Em função da pandemia só é permitido que duas pessoas por vez ali se encontrem. Na sala de convivência se fuma frente à cartazes de campanhas de prevenção e promoção de saúde.  Como sentar, como carregar peso, como e quando lavar as mãos. É assim que eles* se protegem. Eles, os detentores dos meios de produção, fizeram então sua parte.

Seus cartazes e medidas preventivas são feitos às pressas, frágeis, feios e gritam pelos cantos que descolam: “você não importa”. Eu me sento em frente ao caixa em uma cabine improvisada, de uniforme, com o sentimento de insignificância e com a consciência de que a minha força de trabalho mais valia. Depois do primeiro dia eu disse para mim mesma que não gastaria nada do meu salário naquele mercado.  No plano semanal meu horário acaba quando o mercado fecha, às 22 horas. O caixa fecha quando o último cliente sai. Falta dinheiro no meu caixa, nós contamos duas vezes e eu chego em casa às 23:10.


No segundo dia o gerente me diz às 22:15 que “Se você não quiser levar nada, pode fechar o caixa“. Eu levo sim um saco de batatas. Na saída eu percebo que ele está furado. Assim como o encosto da cadeira do meu caixa está quebrado e o capitalismo e suas instituicoes estão falidas. Eu levo o saco de batatas porque eu moro no terceiro andar, assim eu teria menos peso pra subir na próxima compra e se eu já estou no mercado eu economizo de me expor à uma possível contaminacão junto às batatas do próximo mercado onde eu faria minhas compras.

Carrego o saco com o furo para cima e junto ao meu corpo porque minhas costas doem e porque me sinto sozinha e tenho medo. Eu moro perto, levei para o trabalho somente minhas chaves e uma nota de cinco (na área de funcionários não tem sinal de celular). Espontanemente pensei em comprar um saco de batatas e um de mexerica, mas os dois somariam cinco e trinta e três. O gerente precisou estornar as mexericas.

Volto caminhando com minhas batatas procurando argumentos para contrabalancear minhas dissonâncias cognitivas. Depois eu penso nas pessoas que encontrei, nos pequenos diálogos, nas dores no corpo e penso que eu gosto de trabalhar. Eu gosto de sorrir por trás da minha máscara de pano e desejar para as pessoas um bom final de semana. Eu imagino que amar a vida me protege e que se eu sei que não sou melhor do que qualquer outro trabalhador que precisa sair para trabalhar eu posso também morrer, porque a minha alma está em paz.

Eu amo a vida, mas também gosto de pensar que morrer não é ruim. Assim o meu medo me deixa ir. De luvas e máscaras eu realizo experimentos sociais e contagio pessoas com “bom dia” e induzo medo em cidadãos despreocupados. Como uma agente infiltrada, pedagoga desempregada, um coração revolucionário. Eu fantasio bastante no caminho para casa.

A minha janela dá para um pátio, eu vejo somente a janela dos outros vizinhos. Apesar dos meus argumentos profundos para contrabalancear as dissonâncias cognitivas, eu chego em casa e tiro meu uniforme em frente a máquina de lavar. O uniforme no chão é uma imagem de paz. Tomo banho com nojo como se eu tivesse feito algo errado. Eu deito na cama e penso nas pessoas das fotos dos currículos na mesa do gerente, que queriam estar no meu lugar. Penso na menina de quatro anos que ganhou uma revista de unicórnio enquanto seu pai comprava duas garrafas de vodka quando já era hora dela estar na cama. Penso no morador de rua que me deu gorjeta, penso nos centavos que vão faltar amanhã no meu caixa, nos produtos novos que não estarão cadastrados no sistema e durmo e sonho com a outra moradora de rua que se urinou em frente ao caixa.

Um homem refugiado me perguntou ontem “Até quando? Até quando doença?“. Eu apontei para minha cicatriz de BCG e disse “Não sei... Talvez até nós termos uma va ci na“. Ele abriu os olhos espantado, depois sorriu e me perguntou entusiasmado “Você já tomou?". Eu disse que não e respondi olhando os outros que esperavam na fila que “talvez em outubro, ou no ano que vem…”. O seu otimismo fez o meu coração doer. Depois ele foi embora meio desapontado, mas vai voltar amanhã. Ele gosta de falar comigo. Eu gosto de falar com ele.

Poesia para Aldir Blanc


Simples e absurdo
perder Aldir

Suas palavras eram pontes
para dentro de nós

Um tecido esburacado
pelas fragilidades mais humanas

Narrativas insanas
um recado dobrado em papel amassado

No bolso de um moribundo que não sabe ler
Ele ama, sofre, sente e chora

É brasileiro

Finalmente as palavras diziam
o que palavras não sabem dizer

Palavras com poder de mudar
não só como escrever, como pensar.

Síntese poética antitética
Sinestesia epifania e catarse,

Cores, sons, o céu, o inferno e a Ave Maria.
Nas minhas noites incansáveis de não entender a vida

Palavras urdidas por Aldir

Eu sei o que tem dentro do Catavento:
Poesia em resposta ao tempo.




terça-feira, 21 de abril de 2020

Ato de Resistência.


Deixar o tempo penetrar em nós
E inspirar saudades e paciência,
Mesmo quando nós nos vemos a sós,
Superar nosso medo da existência.

Respirar o ar, ato de resistência,
Viver e morrer são nossos instintos,
Um paradoxo da resiliência,
Não desisto, insisto em minha cadência.

Noite clara, fito o céu em diligência,
Astros multiplicam se em cortesia,
Consonantes com minha teimosia

A ventura é a paz de um poente,
Viver plenamente, árduo dilema,
Que como um bom poema, vale a pena.