A
rua Cruzeiro é uma rua pobre, mas não muito pobre, pois fica ainda na região
central da cidade. A rua Cruzeiro tem muitas árvores, mas ainda assim é uma rua
feia, antiga e suja. Tem muitos gatos que miam noite adentro em tempos de
cio.
Uma
das esquinas da rua Cruzeiro é uma rua chamada rua do Bosque.
A
rua do Bosque é bem grande, muito comprida, suja e quebrada. Entre as casas
feias e pobres e entre a gente feia e pobre da rua do Bosque estão Seu João e
sua casa.
Seu
João tem 85 anos e vive só. Sua casa tem 65 anos. A casa do Seu João está na
rua do Bosque no mesmo quarteirão da rua Cruzeiro.
Na
rua Cruzeiro tem uma pequena vila, na qual se entra por uma pequena rua
chamada antigamente de travessa Sardenha (há uma placa vermelha da prefeitura
com esse nome grafado), porém hoje os correios ignoram esse nome, e a vila está
simplesmente na rua Cruzeiro 231.
A
vila de casas é muito pobre, úmida, com infiltrações e muitos gatos que miam
toda noite quando estão no cio. Ulisses
foi o nome que o Caio escolheu para um gatinho que decidiu morar na sua casa e
que o rapaz decidiu alimentar.
Caio
tem 28 anos, ele mora com quatro pessoas e sabe o que não quer. Ele não quer
outra namorada. Tudo seria mais fácil se ele não estivesse, de alguma forma,
apaixonado por uma menina.
Uma
menina de 17 anos chamada Luciana e que morava na Mooca, um pouco longe, porém ela tinha muito afeto e
familiaridade pela região da rua Cruzeiro porque ali ela caminhava com o Caio
de noite para buscar o que jantar, fazer amor, ouvir os gatos derrubarem latas,
pisar nos telhados, gemer quando estão no cio e dormir.
Havia
um desencontro entre as vontades do casal, e muito choro e muitas palavras à
toa em uma tarde de sábado. Luciana chorou o tempo todo. Caio só chorou sozinho
no caminho de volta para rua Cruzeiro.
No
dia seguinte Luciana almoçou com sua mãe e de repente quis largar meio prato de
comida na mesa e foi para rua Cruzeiro, não sabia o que iria dizer, mas queria
vê-lo, inventou uma desculpa, um objeto esquecido para entregar.
Quando
ela chegou ele não estava, segundo alguém, ele tinha acabado de sair. Decidiu
esperar. Enrolou um baseado. Rapazes se aproximaram, perguntaram quem ela era e
o que fazia. Ofereceu maconha para eles, ficou contente que eles não aceitaram,
explicou quem era e o que esperava, os rapazes pronunciaram alguns tipos de
cantadas, mas respeitando mais ao Caio do que a Luciana, foram embora.
Então
Seu João se aproximou, disse que ficaria ali com ela esperado Caio chegar, para
protege-la dos caras perigosos da rua. Luciana ofereceu maconha, o velho
recusou com muita convicção, disse nunca ter fumado disso dai na vida, só cigarro normal mesmo, esse sim ele gostava de
fumar. Mas, curiosamente, mencionou que suas companheiras sempre fumaram, ele
não gostava, mas elas fumavam.
Luciana
perguntou quantas vezes ele foi casado, ele respondeu três. Uma vez por
dois anos, uma por cinco e uma por onze. Ela perguntou quantas vezes ele amou. Ele
disse que gostou muito das três. Ela perguntou de qual ele gostou mais. Ele
disse que da que ele ficou onze anos, que foi última e se chamava Neide.
Neide
era passista de escola de Samba, Seu João quis dizer isso dando a entender que
ela negra e gostosa, ele tentou encontrar diversas palavras para explicar isso,
e Luciana entendeu, mas ele não usou nem a palavra negra e nem gostosa.
Neide
trabalhava de noite, e Seu João fez questão de dizer que ele sabia. Com isso ele quis dizer que ela era prostituta, usou diversas palavras para tentar explicar isso, menos a palavra prostituta. Eles nunca moraram juntos, ela tinha um
apartamento onde atendia próximo à av. Brigadeiro com a av. Paulista, mas ela
não dormia em sua casa, todas as madrugadas, por volta das cinco ou seis ela ia
para casa do Seu João na rua Cruzeiro e eles dormiam juntos.
Isso
era pouco porque ele acordava para trabalhar as oito. Ele perguntou pra Luciana
se o namorado dela fumava maconha, ela disse que não, e que não eram namorados.
Ele respondeu aaah sim, como se
tivesse entendido tudo, disse que falou de serem namorados porque sempre via os
dois juntos pela rua.
Luciana
perguntou se ele costumava ver o Caio com outras meninas. Ele disse que não,
nunca e isso encheu o coração dela de felicidade. Luciana perguntou se o velho
não tinha ciúmes da Neide, e ele disse que não, nunca e que aquilo era
besteira.
Luciana
perguntou porque ele e a Neide estavam separados, mas ele não ouviu, ou fingiu
que não ouviu e começou a contar que o que ele mais gostava era de passar o
natal com ela, que Neide comprava tudo, vinho, peru, salada e ia para casa dele,
então eles cozinhavam e podiam passar uma noite inteira juntos.
Luciana
perguntou se ele sabia onde ela estava, se estava viva. Ele disse que não
sabia, que talvez estivesse naquele apartamento da av. Brigadeiro com a
Paulista, mas que não tinha vontade de saber. Seu João tinha cheiro forte de
cigarro e de sujeira, e gostava de falar de perto, de falar devagar.
Depois
de três horas esperando o Caio chegou. Luciana disse que só veio entregar uma
coisa, ele se ofereceu para esperar o ônibus com ela na rua do Bosque. Seu João
ficou observando de longe. Que bom que era domingo e o ônibus demoraria bastante.
Eles
se abraçaram, choraram, Luciana contou tudo que o Seu João tinha dito, o ônibus
passou várias vezes, e eles ficaram de pé abraçados até o último passar. Caio
convidou a Luciana para entrar, mas ela não queria repetir a rotina. Se
beijaram muitas vezes, tiveram dor nas pernas, nas costas, mas continuaram ali,
em pé juntos e parecia muito difícil se separar.
Acho
que até hoje depois de tanto tempo, eles nunca se soltaram de vez. A rua Cruzeiro deixou de fazer parte da vida
deles alguns meses depois de janeiro do ano em que tudo isso aconteceu, Luciana e Caio foram morar juntos do outro lado do trilho do trem, na Barra Funda. Mas atualmente não vivem mais juntos e não são namorados
E
sobre a Neide e o Seu João, eu não sei, talvez isso sirva para mostrar alguma
coisa pra gente, que eu ainda não consigo ( ou talvez não queira) dizer.
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