domingo, 11 de janeiro de 2015

Caio, Luciana, João e Neide.


A rua Cruzeiro é uma rua pobre, mas não muito pobre, pois fica ainda na região central da cidade. A rua Cruzeiro tem muitas árvores, mas ainda assim é uma rua feia, antiga e suja. Tem muitos gatos que miam noite adentro em tempos de cio.

Uma das esquinas da rua Cruzeiro é uma rua chamada rua do Bosque.

A rua do Bosque é bem grande, muito comprida, suja e quebrada. Entre as casas feias e pobres e entre a gente feia e pobre da rua do Bosque estão Seu João e sua casa.

Seu João tem 85 anos e vive só. Sua casa tem 65 anos. A casa do Seu João está na rua do Bosque no mesmo quarteirão da rua Cruzeiro.

Na rua Cruzeiro tem uma pequena vila, na qual se entra por uma pequena rua chamada antigamente de travessa Sardenha (há uma placa vermelha da prefeitura com esse nome grafado), porém hoje os correios ignoram esse nome, e a vila está simplesmente na rua Cruzeiro 231.

A vila de casas é muito pobre, úmida, com infiltrações e muitos gatos que miam toda noite quando estão no cio.  Ulisses foi o nome que o Caio escolheu para um gatinho que decidiu morar na sua casa e que o rapaz decidiu alimentar.

Caio tem 28 anos, ele mora com quatro pessoas e sabe o que não quer. Ele não quer outra namorada. Tudo seria mais fácil se ele não estivesse, de alguma forma, apaixonado por uma menina.

Uma menina de 17 anos chamada Luciana e que morava na Mooca,  um pouco longe, porém ela tinha muito afeto e familiaridade pela região da rua Cruzeiro porque ali ela caminhava com o Caio de noite para buscar o que jantar, fazer amor, ouvir os gatos derrubarem latas, pisar nos telhados, gemer quando estão no cio e dormir.

Havia um desencontro entre as vontades do casal, e muito choro e muitas palavras à toa em uma tarde de sábado. Luciana chorou o tempo todo. Caio só chorou sozinho no caminho de volta para rua Cruzeiro.

No dia seguinte Luciana almoçou com sua mãe e de repente quis largar meio prato de comida na mesa e foi para rua Cruzeiro, não sabia o que iria dizer, mas queria vê-lo, inventou uma desculpa, um objeto esquecido para entregar.

Quando ela chegou ele não estava, segundo alguém, ele tinha acabado de sair. Decidiu esperar. Enrolou um baseado. Rapazes se aproximaram, perguntaram quem ela era e o que fazia. Ofereceu maconha para eles, ficou contente que eles não aceitaram, explicou quem era e o que esperava, os rapazes pronunciaram alguns tipos de cantadas, mas respeitando mais ao Caio do que a Luciana, foram embora.

Então Seu João se aproximou, disse que ficaria ali com ela esperado Caio chegar, para protege-la dos caras perigosos da rua. Luciana ofereceu maconha, o velho recusou com muita convicção, disse nunca ter fumado disso dai na vida, só cigarro normal mesmo, esse sim ele gostava de fumar. Mas, curiosamente, mencionou que suas companheiras sempre fumaram, ele não gostava, mas elas fumavam.

Luciana perguntou quantas vezes ele foi casado, ele respondeu três.  Uma vez por  dois anos, uma por cinco e uma por onze.  Ela perguntou quantas vezes ele amou. Ele disse que gostou muito das três. Ela perguntou de qual ele gostou mais. Ele disse que da que ele ficou onze anos, que foi última e se chamava Neide.

Neide era passista de escola de Samba, Seu João quis dizer isso dando a entender que ela negra e gostosa, ele tentou encontrar diversas palavras para explicar isso, e Luciana entendeu, mas ele não usou nem a palavra negra e nem gostosa.

Neide trabalhava de noite, e Seu João fez questão de dizer que ele sabia. Com isso ele quis dizer que ela era prostituta, usou diversas palavras para tentar explicar isso, menos a palavra prostituta.  Eles nunca moraram juntos, ela tinha um apartamento onde atendia próximo à av. Brigadeiro com a av. Paulista, mas ela não dormia em sua casa, todas as madrugadas, por volta das cinco ou seis ela ia para casa do Seu João na rua Cruzeiro e eles dormiam juntos.

Isso era pouco porque ele acordava para trabalhar as oito. Ele perguntou pra Luciana se o namorado dela fumava maconha, ela disse que não, e que não eram namorados. Ele respondeu aaah sim, como se tivesse entendido tudo, disse que falou de serem namorados porque sempre via os dois juntos pela rua.

Luciana perguntou se ele costumava ver o Caio com outras meninas. Ele disse que não, nunca e isso encheu o coração dela de felicidade. Luciana perguntou se o velho não tinha ciúmes da Neide, e ele disse que não, nunca e que aquilo era besteira.

Luciana perguntou porque ele e a Neide estavam separados, mas ele não ouviu, ou fingiu que não ouviu e começou a contar que o que ele mais gostava era de passar o natal com ela, que Neide comprava tudo, vinho, peru, salada e ia para casa dele, então eles cozinhavam e podiam passar uma noite inteira juntos.

Luciana perguntou se ele sabia onde ela estava, se estava viva. Ele disse que não sabia, que talvez estivesse naquele apartamento da av. Brigadeiro com a Paulista, mas que não tinha vontade de saber. Seu João tinha cheiro forte de cigarro e de sujeira, e gostava de falar de perto, de falar devagar.

Depois de três horas esperando o Caio chegou. Luciana disse que só veio entregar uma coisa, ele se ofereceu para esperar o ônibus com ela na rua do Bosque. Seu João ficou observando de longe. Que bom que era domingo e o ônibus demoraria bastante.

Eles se abraçaram, choraram, Luciana contou tudo que o Seu João tinha dito, o ônibus passou várias vezes, e eles ficaram de pé abraçados até o último passar. Caio convidou a Luciana para entrar, mas ela não queria repetir a rotina. Se beijaram muitas vezes, tiveram dor nas pernas, nas costas, mas continuaram ali, em pé juntos e parecia muito difícil se separar.

Acho que até hoje depois de tanto tempo, eles nunca se soltaram de vez.  A rua Cruzeiro deixou de fazer parte da vida deles alguns meses depois de janeiro do ano em que tudo isso aconteceu, Luciana e Caio foram morar juntos do outro lado do trilho do trem, na Barra Funda.  Mas atualmente não vivem mais juntos e não são namorados


E sobre a Neide e o Seu João, eu não sei, talvez isso sirva para mostrar alguma coisa pra gente, que eu ainda não consigo ( ou talvez não queira)  dizer.

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