sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Gabi

Aos dez anos eu tinha uma melhor amiga, e mesmo eu sendo uma menina de cabelos curtos e tênis de menino, eu tinha uma melhor amiga bacana. Ela tinha cabelos castanhos e longos e as unhas grandes e bem feitas, sua mãe pintava-as com florezinhas,  seu nome era Gabi.
 
A professora costumava mostrar o caderno dela, bonito e organizado, para a turma, dizendo como nossos cadernos deveriam ser. Eu me esforçava muito para ter um caderno como dela, e sonhava com o momento em que a professora usaria meu caderno de exemplo, mas esse dia nunca chegou e até hoje eu não sei escrever de letra de mão.
 
Eu disse que a Gabi era bacana por alguns motivos: Ela era bonita, trazia de lanche sempre coisas gostosas, concordava com tudo que eu dissesse, todos queriam estar perto dela, e perto de mim quando eu estava com ela, e nas aulas de dança (que fazíamos em uma academia na frente da escola, depois da aula) ela conseguia fazer tudo, tinha abertura de pernas zero e sabia fazer todas as outras coisas que provavelmente causariam uma distensão em qualquer cidadão.
 
Nossa aula de dança era às duas, almoçamos rápido e ficávamos na sala de dança, sozinhas, treinando e conversando enquanto não começava a aula.
 
Eu era péssima, das garotas da minha idade eu era a única que ainda não tinha abertura zero, porém a professora gostava muito de mim, dizia que eu era expressiva, desde que entrei nas aulas ela sempre me colocava para apresentar as coreografias na primeira fila com as garotas que dançavam melhor.
 
Com o tempo as meninas melhoraram muito na dança, e eu continuava um desastre, quando chegou o ponto de ser impossível que eu estivesse na primeira fila, os espetáculos de dança da academia viraram peças de teatro com dança, eu era sempre a vilã ou uma heroína corajosa, ainda ocupando a frente e o centro do palco, mas nunca era a boazinha, a bonita ou a pobre moça pobre...

As vezes me incomodava não ser a bonita da história, mas mesmo assim era legal, eu gostava porque geralmente nas aulas seguintes a apresentação as meninas me contavam que seus familiares me fizeram elogios. A mãe da Gabi gostava muito de mim, e pra melhorar ela trabalhava com meu pai, era um bom começo.

Um dia, eu sonhei que estávamos na sala de ensaio, a Gabi estava deitada, com as pernas totalmente abertas se alongando, e eu entrava no meio das suas pernas, encontrava seu rosto, e lhe dava um beijo na boca. As segundas e quartas seguintes ao sonho foram momentos de extrema inquietude, eu ficava nervosa do lado dela, não durante as aulas da escola ou da academia, nas aulas havia outras pessoas, estaríamos em segurança, mas quando éramos só nós duas em nossos collants, eu não conseguia pensar em outra coisa senão me enfiar no meio das pernas dela e lhe dar o sonhado beijo.
 
E em algum dia, ela fez aquilo que sempre fazia, o alongamento deitada, e eu me enfiei ali, e a beijei, e ela me beijou. Eu sabia que ela já tinha beijado antes, e ela pensava que eu também já tinha. Ela me beijou pra valer, e me olhou depois, mas eu não consegui olhar pra ela, me afastei, deitei do lado dela, e disse olhando para o teto " Se você contar pra alguém, eu digo pra todo mundo que você que me beijou".
 
Falei aquilo mesmo sabendo que as pessoas acreditariam mais na Gabi do que em mim, mas ela não tinha certeza disso. Eu sentia, aos dez anos, que eu a controlava demais, ela nunca conseguia vencer uma discussão comigo, as vezes eu a convencia com argumentos que eu sabia que eram péssimos, mas ela tinha medo de algo em mim, algo que ela temia e admirava , talvez minha expressividade, ou meu jeito de conseguir falar o que penso...
 
A Gabi não deixou de ser minha amiga, depois do beijo, tudo voltou ao normal e eu não pensei mais nisso, eu continuei indo muito a casa dela, planejávamos o que faríamos no futuro, ter nossa própria academia de dança, eu tentava convence-la a ter a mesma opinião que eu sobre tudo, e gostávamos de conversar de madrugada por telefone escondido, estávamos juntas o tempo todo... Acho que ela ficava esperando que eu a atacasse novamente. Nunca aconteceu. Hoje, pensando em tudo isso eu fico vaidosa, será que ela era apaixonada por mim também? É impossível que ela fosse tão encantadora! Estava fazendo charme o tempo todo, me olhando de lado... Como eu e o meu beijo éramos ingênuos!
 
Eu mudei de bairro, paramos de nos falar aos poucos, e por esses dias tive notícias de que ela continuava dançando, com suas pernas abertas de collant, para o bem de todos e felicidade geral da nação.