Um prédio de kitnets é um antro
de pessoas estranhas, nós mesmos éramos um casal incomum, eu tinha certeza. Muitas vezes eu passava pela recepção de olhos vermelhos, com o rosto inchado,
de óculos escuros e sentia que as pessoas por mais que me olhassem daquele
jeito nunca poderiam entender porque sou triste. Aquelas pessoas que estão
sempre na recepção jamais entenderiam por que você sai tarde e volta de
madrugada ou de manhã, ou porque as vezes você sai tarde e não volta e saio
louca pelas manhãs. Eu estou indo comprar um cartão telefônico, pra saber na casa
de que vaca você dormiu, ou se dormiu na rua. Foda-se, não importa, todos os
vizinhos são estranhos,a ma
dupla de modelos anoréxicas, uma dúzia de bêbados solitários que falam sozinhos,
uma porção de velhos aposentados e abandonados com cachorros fedidos, peludos,
barulhentos e mal lavados, adolescentes sem família, que saem do interior por
causa daquela velha história, um cantor sertanejo que faz shows com gerador na
praça da sé, casais com mulheres com cara de estéreis e no apartamento 109,
nós. O apartamento 109 que se tivesse portas seria de portas batendo, mas não
tem porra de porta nenhuma. Apartamento 109 de barulhos e gritos e choro e
soluços e muita música, advertências e multas de a gente fazendo as pazes
tocando piano e violão cigano nas madrugadas que você não sai pra tocar em bar,
em praça, na rua, no metro, na puta que o pariu. Gritamos um com o outro, você
diz que não toca mais em mim, eu digo que já percebi que você não quer mais me
tocar, você começa a bater nos móveis e fazer barulho para por os sapatos e
pegar sua chave, eu pergunto onde você vai, você demora e diz com a voz
tremulando que vai comprar pão. Eu me escondo em baixo da cama, você volta com
pão e bolo, me pega no colo e me senta no meu troninho, eu te olho doce, e
nessa casa não tem portas, da pra se ver de qualquer cômodo, e nossa vida é
assim, eu olhando por você e você olhando por mim, eu olhando pra você e você
olhando pra mim, percebendo que eu perdi minhas coisas, estendendo minhas
calcinhas, desligando as bocas do fogão que eu esqueço vazando gás, lavando minha louça, me cobrindo de noite, com
muito carinho. Eu fazendo seu café, levando sua escova de dente no box, com
mais pasta do que você colocaria, eu comprando o sabonete que você gosta, mas nunca
compra sempre que falta, eu tirando o lixo, que você sempre esperaria encher
até o máximo e ficar difícil pra fechar. As vezes eu também te cubro de noite
com muito carinho, arrumo a posição do seu braço pra não doer, ou te acordo pra
dizer, amor, deita direito. Te chamo de Pai, você me chama de Bebê, te chamo de
amor e você me faz lembrar de todos os momentos que já senti algum amor na
vida, me beija, me cuida e eu quero sempre mais, e choro, e você sofre, quando
me acalmo você começa a gritar, dizer que vou te enlouquecer, eu choro, você
chora, caímos no sono, mas antes disso nos abraçamos e nos enchemos de carinho,
eu não sei mais viver sem você. Você não fica bem sem mim, eu sei, quando eu
não estou ou quando você não está fica esse clima assim no ar.