sábado, 2 de novembro de 2013

Um prédio de kitnets é um antro de pessoas estranhas, nós mesmos éramos um casal incomum, eu tinha certeza. Muitas vezes eu passava pela recepção de olhos vermelhos, com o rosto inchado, de óculos escuros e sentia que as pessoas por mais que me olhassem daquele jeito nunca poderiam entender porque sou triste. Aquelas pessoas que estão sempre na recepção jamais entenderiam por que você sai tarde e volta de madrugada ou de manhã, ou porque as vezes você sai tarde e não volta e saio louca pelas manhãs. Eu estou indo comprar um cartão telefônico, pra saber na casa de que vaca você dormiu, ou se dormiu na rua. Foda-se, não importa, todos os vizinhos são estranhos,a ma dupla de modelos anoréxicas, uma dúzia de bêbados solitários que falam sozinhos, uma porção de velhos aposentados e abandonados com cachorros fedidos, peludos, barulhentos e mal lavados, adolescentes sem família, que saem do interior por causa daquela velha história, um cantor sertanejo que faz shows com gerador na praça da sé, casais com mulheres com cara de estéreis e no apartamento 109, nós. O apartamento 109 que se tivesse portas seria de portas batendo, mas não tem porra de porta nenhuma. Apartamento 109 de barulhos e gritos e choro e soluços e muita música, advertências e multas de a gente fazendo as pazes tocando piano e violão cigano nas madrugadas que você não sai pra tocar em bar, em praça, na rua, no metro, na puta que o pariu. Gritamos um com o outro, você diz que não toca mais em mim, eu digo que já percebi que você não quer mais me tocar, você começa a bater nos móveis e fazer barulho para por os sapatos e pegar sua chave, eu pergunto onde você vai, você demora e diz com a voz tremulando que vai comprar pão. Eu me escondo em baixo da cama, você volta com pão e bolo, me pega no colo e me senta no meu troninho, eu te olho doce, e nessa casa não tem portas, da pra se ver de qualquer cômodo, e nossa vida é assim, eu olhando por você e você olhando por mim, eu olhando pra você e você olhando pra mim, percebendo que eu perdi minhas coisas, estendendo minhas calcinhas, desligando as bocas do fogão que eu esqueço vazando gás,  lavando minha louça, me cobrindo de noite, com muito carinho. Eu fazendo seu café, levando sua escova de dente no box, com mais pasta do que você colocaria, eu comprando o sabonete que você gosta, mas nunca compra sempre que falta, eu tirando o lixo, que você sempre esperaria encher até o máximo e ficar difícil pra fechar. As vezes eu também te cubro de noite com muito carinho, arrumo a posição do seu braço pra não doer, ou te acordo pra dizer, amor, deita direito. Te chamo de Pai, você me chama de Bebê, te chamo de amor e você me faz lembrar de todos os momentos que já senti algum amor na vida, me beija, me cuida e eu quero sempre mais, e choro, e você sofre, quando me acalmo você começa a gritar, dizer que vou te enlouquecer, eu choro, você chora, caímos no sono, mas antes disso nos abraçamos e nos enchemos de carinho, eu não sei mais viver sem você. Você não fica bem sem mim, eu sei, quando eu não estou ou quando você não está fica esse clima assim no ar.