domingo, 24 de fevereiro de 2013

Minha avó não é uma gracinha

E não digo isso porque lhe tenho pouco afeto, pelo contrário, sou a única pessoa no mundo que suporta minha avó, (e nem sempre foi assim). Não se trata apenas das mal criações sem sentido, ou daquelas que infelizmente a gente entende o sentido muito bem, também não é só o fato de ela achar que pode comprar tudo com dinheiro, inclusive a dignidade de todas as pessoas. Dona Maria duvida que isso não esteja sempre à venda. O problema da minha avó está severamente próximo à maldade.

Mas antes de começar as histórias sobre minha avó, presto alguns minutos para escrever sobre ela: Uma senhora mais baixa que eu, em talvez 68 quilos, vestida de moda evangélica (mas coisa fina), e de cabelos brancos, brancos, brancos e recém cortados ( a desilusão com a religião chega uma hora ou outra) e olhos azuis de exatos 89 anos e dez meses.

O fato é que seu gênio, seu jeito, seus gestos e principalmente suas palavras, afastaram todos os familiares. Amigos? Não lembro de jamais ter conhecido algum. Os vizinhos? Colecionam histórias sobre sua crueldade e dos outros membros da família que já faleceram: Um escrivão, seu marido, meu tio, investigador de policia e meu outro tio, da aeronáutica, todos militares, tempos de ditadura... Sabem como é...

Minha avó se orgulha sempre que alguém morre, porque ela enterrou os três ( o marido e dois filhos), sem chorar. Ela não é do tipo que santifica quem morreu, para os piores pesadelos da minha mãe, ela vive a difamar seu marido e seus filhos.

Até hoje, Dona Maria não usa o telefone, porque tem raiva de telefone, porque o Romeu, o marido Romeu, colocou um telefone antes na casa da amante do que na casa deles.

Minha avó se orgulha em dizer que não casou de novo porque não quis, conta sempre uma história sobre um ‘irmão’ da igreja que foi até sua casa sozinho, quer dizer, na companhia apenas de  segundas intensões, e ela não lhe atendeu. Ele insistindo, ela passou-lhe um real por de baixo da porta, pra ele pensar que ela pensou que era alguém pedindo esmolas e ir embora.

Dona Maria acredita que com sua idade pode dizer o que quiser, e diz, e bem... Até hoje ninguém nunca bateu nela. Nem quando ela aponta negros na rua para justificar como eles “não tem gosto” e porque podemos dizer que coisas feias são “coisas de pretos”. Nem quando ela diz no restaurante para a mãe de uma criança negra que “se ela tivesse um filho tão mal educado não levaria ele pra comer num restaurante e sim em uma jaula, tá faltando homem pra se fazer filho com macaco?”.

Ainda teve o dia que ela mandou de volta a encomenda de um bolo, por  ter pedido sem saber que era de chocolate “ Vocês mandaram para minha casa uma negrice”. Dona Maria é tão racista que não come nem chocolate.

Para o infortúnio de minha avó, minha mãe casou com um homem negro, e mais do que isso, negro, pobre e de olhos claros como os dela. Minha avó nunca conseguiu superar que um negro também pudesse ter olhos claros. Com essa história de casamento minha avó só praguejou, e reclamou. Enquanto minha mãe roubava pão com carne de casa para o meu pai, enquanto minha mãe roubava pão com carne da ditadura militar para alimentar meu pai, “neguinho”, “trombadinha”, “delinquente” e preso político.

Minha avó continuou a reclamar e praguejar, enquanto meu pai fazia mestrado doutorado e criava suas filhas. Hoje quando meu pai me leva para casa da minha avó, em um carro caro, minha avó diz “ Ele é um bom preto, poderia ter se casado com uma negrinha bonitinha”.

Eu nasci branca, mas minha irmã não. Então minha avó diz que me suporta porque não puxei a negrice da família, fiquei só com sua parte italiana (Ah! a ilusão!), mas já minha irmã que é morena não é da família, porque não tem a ‘genética branca’

Me fiz cega, muda e surda, porque minha avó esta ficando cada vez mais debilitada, esclerosada, caquética e surda, mesmo. Ela precisa de alguém, de mim. Não culpo minha mãe por não ter forças, minha avó não tem o mínimo de respeito, de filtros, de consideração. Minha mãe trabalha muito, está sempre cheia de problemas, por sorte ela tem um atual companheiro muito legal, que é um grande homem. Minha avó nunca o chamou pelo nome, nunca o respeitou, é o “motorista do carro vermelho” (Aliás ela não chama ninguém que não goste pelo nome).

Cada vez mais esclerosada, as implicâncias começam a fazer menos sentido, assim fica mais fácil eu suportar calada, ontem ela não quis comer o chuchu porque se parecia com calcanhar de Aquiles. Ela sempre reclama da comida, e sempre deixa resto no prato pra dizer que estava ruim, guarda restos horrorosos até apodrecer para me mostrar que a comida estava um lixo. Depois ela vai até o restaurante e pergunta se o cozinheiro ganha mal.

Recebe uma boa aposentadoria, mas é trambiqueira, vive trocando de faxineiras e sempre quer pagar menos e humilhar mais. Uma vez, uma faxineira de confiança, que já ia na sua casa há alguns anos, teve um derrame, minha avó assistiu sentadinha, e não fez nada, até um pedreiro que passava ouvir gritos e socorrer a mulher. Até hoje minha avo lamenta que o pedreiro manchou uma de suas toalhas com sangue da faxineira. A moça obviamente nunca mais passou perto da casa da minha avó, que  diz não entender porque a faxineira sumiu e mais, que ela deveria lhe oferecer uma faxina pela toalha que estragou.

Odeio quando ela me faz rir com alguma maldade, mas às vezes, simplesmente, não aguento. Passamos muito tempo juntas, impossível não se criar algum afeto, e eu tenho uma terrível mania de me apegar a pessoas horríveis, quanto pior melhor. Minha avó me maltrata, me pisa, deita e rola. Quando precisa de algo, de algum favor, ela sempre quer me convencer porque seria bom pra mim ajuda-la, me oferece dinheiro, nunca tem humildade pra pedir.

Um dia demorei 20min para faze-la assumir que ela queria que eu lesse, por favor, para ela, um bilhete do biscoito chinês. Dizia que ela deveria ser mais doce. Demorei um bom tempo tentando explicar o que isso significava, ela me fez até ler o verbete “doce” no dicionário, quando concluímos que ela deveria ser uma pessoa mais amorosa ela ficou em silencio, por infinitos segundos, e depois disse “ Dessa vez o bilhete não serviu pra mim”. O bilhete que antes ela tinha dado tanto valor, Oh, oh! A sabedoria oriental.

Minha avó acha que eu tenho um dom, e diferentemente da minha família que não aguenta mais me ouvir cantar, ela pede que eu cante enquanto lavo a louça, o fogão, o chão, as escadas, por dentro dos canos, da privada, os cantos mais escondidos e empoeirados, é foda, porque em casa nunca fiz nada disso, porque fico com pena de deixar minha avó, minha pobre avozinha na sujeira? Mesmo quando eu sei que ela mesma sujou descaradamente para me mandar limpar? Porque? E ainda me manda fazer tudo cantando, eu faço, eu lavo, eu passo, cantando.

Eu faço tudo para minha avó, tudo pela minha avó. Não sei mais porque, antes não era assim, quando ela não precisava de mim, mas ela está tão sozinha, e precisa tanto! Quando fui viajar, fiquei sabendo que minha mãe foi visita-la e ela gritou e chorou, desesperadamente, feito criança, foi extremamente agressiva e violenta com minha mãe, por ela ter me deixado ir pra tão longe, sozinha, por ela ter tirado da minha avó a única coisa que ela tinha.

Se minha avó soubesse do apuro que eu estava passando na Europa nessa dia... É, só ela estava preocupada...

Hoje tocamos violão juntas ( eu na mãe esquerda, ela só com a direita, batendo as cordas), Saímos para comer, assistimos filmes, escolhemos flores e objetos novos para casa, fazemos unha e cabelo juntas, toda semana e ouço ela reclamar sobre tudo, e falar mal de todas as pessoas que não são como ela, de todas as pessoas que não são ela nem eu. Peço sempre para ela não falar da vida dos outros, pelo menos não tão alto. Peço sempre pra ela respeitar negros índios e japoneses, mas sinto que essa batalha está perdida.

Detesto pensar em quando vou perder minha avó, sendo que durante quase todos os anos de minha vida, quando eu tocava sua campainha e ela demorava para atender, eu sonhava para que ela estivesse morta, e mais, sonhava em levar para minha casa seus moveis belle époque. Um filme se passava pela minha cabeça, quanto mais ela demorava para atender mais eu vibrava, imaginando a partilha dos móveis, cortinas e tapetes.

 Eu precisei crescer para ser capaz de perdoar a minha avó, talvez pareça incompreensível, eu não sei como se parece de fora, mas hoje eu a vejo tão fraca, tão senhora.

Dona Maria, por que você não é doce como a avozinha da novela? Por que não é como as senhoras dos comerciais de margarina? Avózinha do céu, por que você não é uma gracinha? Posso julgar alguém por te odiar? Sou pior por gostar de você?