quinta-feira, 4 de abril de 2013

Uma história que imaginei tentando abrir seu portão.


Essa história está rota, está com pó, com a textura dos papeis da década de 60 que costumava bisbilhotar da caixa azul na gaveta de meias do meu pai.  Mas adiante, que não faz muito tempo, adiantemos para outra parte.

Caio entrou no banho, foi dar-se o homem nu as águas  quando lembramos que não tínhamos sabonete. O Caio toma muito banho, sempre estamos sem sabonete. Eu disse pra ele ir tomando banho que eu iria comprar, pertinho de casa.

Depois de anunciar minha ida, me dirigi à porta, e lembrei-me de uma questão sensível: Não sei usar chaves. As vezes consigo, as vezes não, cresci sem trancar portas, tenho por habito, desde sempre, deixar quem quisesse entrar...

Sai de casa deixando dois portões abertos, para não ter problemas na volta. Sai e o caminho que sempre fazíamos juntos, agora se confundia entre os rabiscos das paredes do Bom Retiro, ou Barra Funda, ou Largo da Banana, onde eu estou? Cadê a torre da igreja de Santo Antônio?

Foi que vi um bar, com uma guitarra pendurada na parede, Perguntei: “Ela é do senhor? Você ainda pode tocar?”. Ele me mandou sentar, nada me ofereceu, começou, soou familiar, mas não, eu não conhecia, ou conhecia? Demorava em cada tema, e seus olhos, ou  alguns grunhidos me interrompiam se eu tentava perguntar-lhe algo. Ele insistia entre os dentes cerrados “ Ouve!”

Escondia o rosto por entre os cabelos, brancos, de talvez 90 anos, longos e enrolados, barba e bigodes de naufrago, nariz pontiagudo e corpo de quem passa fome, algum sotaque. O bar ocupava a esquina, mas não era muito maior que um banheiro, tinha uma prateleira só de temperos e por entre um milhão de objetos inúteis um cheiro muito forte, dele.

Uma mistura de cheiro de sabonete, de homem, de suor de homem, de praia, de comida temperada, de pele mole e de amaciante.  O melhor cheiro que já senti, cheiro de coisa boa pra lembrar, de gosto bom na boca, de boca molhada. Quase me deixou com tesão por um homem e seus noventa anos.

Levantei-me, antes que pudesse agir ou pensar qualquer resolução em palavras ou menos que isso dentro da minha cabeça, mais rápido que um raio, antes de possibilidade, antes que qualquer algo pudesse acontecer, logo que me levantei senti sua mão no meu braço, com força, a guitarra silenciou. “Fica aqui” Ele disse.

Estremeci, senti meu corpo ferver, como se conhecesse o homem muito bem, como se soubesse de tudo, arrisquei “Por que?”,  ele respondeu, olhando pra baixo uma frase que eu já ouvi,    seu corpo, em uma camisa aberta oscilou minimamente um movimento para me tocar, para se aproximar, eu queria, mas não, ele queria, mas não  veio, deixou a guitarra pesar sobre o colo e voltou a tocar, como se só para ele, como que tímido, mas generosamente para mim, era para mim.

Especialmente para mim, e eu tinha que ouvir, sem tocar, sem chorar, e sem sentir nojo das suas manchas na pele, das suas marcas de ossos e das suas veias pelo pescoço, braço e face. Deixei ele me tocar da maneira mais devastadora que poderia, até me ver do avesso, até me ver do fim ao começo, em um banco de madeira, num bar de esquina apanhei de uma guitarra velha, de um homem velho, apanhei toda minha vida nas mãos, o mundo não é muito maior que um banheiro.

O mundo cabe em um bar de esquina, estava tudo ali, raio x, dossiê, em notas, eu queria conversar, mas ele não queria dizer, não com palavras, o céu já laranja, sensação de fome familiar, porra, como somos pobres, como somos uns fudidos, nessa porra desse bar só tem farinha. Então terminamos assim? Isso me deixou triste, cansada, pedi pra ele informação de onde poderia comprar sabonetes como quem se despede.

Minhas pernas foram embora, tentando reconhecer o caminho, e eu não entendia nada, eu sob os postes alaranjados do Bom Retiro, ou Barra Funda, ou qualquer rua suja com pessoas que dão medo, consegui enfim comprar sabonetes, Caio talvez já estivesse enrugado.

Não precisei me preocupar com o caminho de volta, o cachorro veio me buscar, me guiou até em casa, que horas são? Porra! Não consigo abrir a porra do portão! Mas deu tempo de alguém fechar essa merda?

Brigamos, eu o portão e as chaves, a vizinha abriu a porta, cheguei a tempo do  banho, entrei com Caio, que reclamou dos meus pés descalços.

Eu não poderia lembrar de nenhuma das músicas, mas e se não aconteceram?  Acontecerão ainda na imaginação de um velho sem trastes, numa quinta feira de esquina? Acho que aquele lugar tinha cheiro as nossa casa...

Tinha cheiro de lembrança boa, de que a gente já foi feliz. “ Benzinho, aqui perto da sua casa tem um bar com uma guitarra pendurada, já viu?”... Não importa muito a resposta que ele me deu, depois de algum tempo casais não precisam mais dizer sim e não um para o outro, dá pra ler nos olhos... E agora eu já sei de tudo, sei que você me espera numa esquina daqui noventa anos, com os olhos revezando os lados, com ora a frente, ora as costas me esperando o abraço.

“Benzinho, desculpa se eu demorei, não conseguia abrir o portão, não conseguia achar o caminho... Nós temos sempre compromisso, estamos sempre correndo, me seca o pé, e  me deixa te abotoar todos os botões que você não abotoaria, pronto, é isso, até daqui a pouco, amanhã, ou noventa anos de espera muda, não dói não, não é aflito, dá medo, mas foi um encontro incrível benzinho. O tempo não é ruim pra esses sentimentos...”