Essa história está
rota, está com pó, com a textura dos papeis da década de 60 que costumava
bisbilhotar da caixa azul na gaveta de meias do meu pai. Mas adiante, que
não faz muito tempo, adiantemos para outra parte.
Caio entrou no
banho, foi dar-se o homem nu as águas quando lembramos que não tínhamos
sabonete. O Caio toma muito banho, sempre estamos sem sabonete. Eu disse pra
ele ir tomando banho que eu iria comprar, pertinho de casa.
Depois de anunciar
minha ida, me dirigi à porta, e lembrei-me de uma questão sensível: Não sei
usar chaves. As vezes consigo, as vezes não, cresci sem trancar portas, tenho
por habito, desde sempre, deixar quem quisesse entrar...
Sai de casa
deixando dois portões abertos, para não ter problemas na volta. Sai e o caminho
que sempre fazíamos juntos, agora se confundia entre os rabiscos das paredes do
Bom Retiro, ou Barra Funda, ou Largo da Banana, onde eu estou? Cadê a torre da
igreja de Santo Antônio?
Foi que vi um bar,
com uma guitarra pendurada na parede, Perguntei: “Ela é do senhor? Você ainda
pode tocar?”. Ele me mandou sentar, nada me ofereceu, começou, soou familiar,
mas não, eu não conhecia, ou conhecia? Demorava em cada tema, e seus olhos, ou
alguns grunhidos me interrompiam se eu tentava perguntar-lhe algo. Ele
insistia entre os dentes cerrados “ Ouve!”
Escondia o rosto
por entre os cabelos, brancos, de talvez 90 anos, longos e enrolados, barba e
bigodes de naufrago, nariz pontiagudo e corpo de quem passa fome, algum
sotaque. O bar ocupava a esquina, mas não era muito maior que um banheiro,
tinha uma prateleira só de temperos e por entre um milhão de objetos
inúteis um cheiro muito forte, dele.
Uma mistura de
cheiro de sabonete, de homem, de suor de homem, de praia, de comida temperada,
de pele mole e de amaciante. O melhor cheiro que já senti, cheiro de
coisa boa pra lembrar, de gosto bom na boca, de boca molhada. Quase me deixou
com tesão por um homem e seus noventa anos.
Levantei-me, antes
que pudesse agir ou pensar qualquer resolução em palavras ou menos que isso
dentro da minha cabeça, mais rápido que um raio, antes de possibilidade, antes
que qualquer algo pudesse acontecer, logo que me levantei senti sua mão no meu
braço, com força, a guitarra silenciou. “Fica aqui” Ele disse.
Estremeci, senti
meu corpo ferver, como se conhecesse o homem muito bem, como se soubesse de
tudo, arrisquei “Por que?”, ele respondeu, olhando pra baixo uma frase
que eu já ouvi, seu corpo, em uma camisa aberta oscilou
minimamente um movimento para me tocar, para se aproximar, eu queria, mas não,
ele queria, mas não veio, deixou a guitarra pesar sobre o colo e voltou a
tocar, como se só para ele, como que tímido, mas generosamente para mim, era
para mim.
Especialmente para
mim, e eu tinha que ouvir, sem tocar, sem chorar, e sem sentir nojo das suas
manchas na pele, das suas marcas de ossos e das suas veias pelo pescoço, braço
e face. Deixei ele me tocar da maneira mais devastadora que poderia, até me ver
do avesso, até me ver do fim ao começo, em um banco de madeira, num bar de
esquina apanhei de uma guitarra velha, de um homem velho, apanhei toda minha
vida nas mãos, o mundo não é muito maior que um banheiro.
O mundo cabe em um
bar de esquina, estava tudo ali, raio x, dossiê, em notas, eu queria conversar,
mas ele não queria dizer, não com palavras, o céu já laranja,
sensação de fome familiar, porra, como somos pobres, como somos uns fudidos,
nessa porra desse bar só tem farinha. Então terminamos assim? Isso me deixou
triste, cansada, pedi pra ele informação de onde poderia comprar sabonetes como
quem se despede.
Minhas pernas
foram embora, tentando reconhecer o caminho, e eu não entendia nada, eu sob os
postes alaranjados do Bom Retiro, ou Barra Funda, ou qualquer rua suja com
pessoas que dão medo, consegui enfim comprar sabonetes, Caio talvez já
estivesse enrugado.
Não precisei me
preocupar com o caminho de volta, o cachorro veio me buscar, me guiou até em
casa, que horas são? Porra! Não consigo abrir a porra do portão! Mas deu tempo
de alguém fechar essa merda?
Brigamos, eu o
portão e as chaves, a vizinha abriu a porta, cheguei a tempo do banho, entrei com Caio, que reclamou dos meus
pés descalços.
Eu não poderia
lembrar de nenhuma das músicas, mas e se não aconteceram? Acontecerão
ainda na imaginação de um velho sem trastes, numa quinta feira de esquina? Acho
que aquele lugar tinha cheiro as nossa casa...
Tinha cheiro de
lembrança boa, de que a gente já foi feliz. “ Benzinho, aqui perto da sua casa
tem um bar com uma guitarra pendurada, já viu?”... Não importa muito a resposta
que ele me deu, depois de algum tempo casais não precisam mais dizer sim e não
um para o outro, dá pra ler nos olhos... E agora eu já sei de tudo, sei que
você me espera numa esquina daqui noventa anos, com os olhos revezando os
lados, com ora a frente, ora as costas me esperando o abraço.
“Benzinho, desculpa
se eu demorei, não conseguia abrir o portão, não conseguia achar o caminho...
Nós temos sempre compromisso, estamos sempre correndo, me seca o pé, e me deixa te abotoar todos os botões que você
não abotoaria, pronto, é isso, até daqui a pouco, amanhã, ou noventa anos de
espera muda, não dói não, não é aflito, dá medo, mas foi um encontro incrível
benzinho. O tempo não é ruim pra esses sentimentos...”