segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Meu nariz no seu cu

Um comentário bastante indelicado foi proferido de maneira muito polida e com palavras ditas bastante rapidamente porém continuou sendo inconveniente meu novo namorado me questionar sobre o amontoado de caixas de papelão dispostas sobre o chão da sala (foi indelicado porque eu já tinha dito que estava passando por uma separação e também porque era muito cedo para eu ter que explicar alguma coisa) na hora eu não pensei muito disse simplesmente que tudo aquilo era do falecido hoje percebi na minha relação com as coisas com as suas coisas: você foi o corpo morto que eu profanei que eu abri e estudei e cavei e procurei desrespeitei o óbito  com quem eu dancei na sala a camisa com quem eu dormi de conchinha a pilha de roupas onde eu enfiei a cara  e cheirei e chorei e afundei as unhas e sequei o choro e dancei de novo quero que fique bastante explicita a questão do falecimento por isso retorno a uma narrativa de um passado distante quando vivíamos juntos e felizes essa narrativa ilustra muito meu papel na nossa relação eis a narrativa: uma cueca suja no chão do quarto ou no canto da cama parecia encaixar-se muito anatomicamente na minha cabeça de modo que o seu cu ficasse no meu nariz você estava estudando ou no facebook e eu aparecia assim na sala exibindo meu nariz no seu cu você ficava envergonhado dizia que estava podre (a cueca) e em seguida ficava bravo naquela época você era vivo apesar de saber que ficaria bravo eu não tinha vergonha de te mostrar minhas aventuras anatômicas com sua roupa na verdade aconteceram muitas coisas entre eu e elas depois que você foi embora eu te xinguei muito tanto que ao encostar de novo nas suas roupas me senti profanar meus próprios demônios me traindo por te perdoar você me magoou tanto que um perdão só seria merecido mediante a morte então eu te matei ignorei sua existência e me rendi ao prazer do seu cheirinho nas coisas antes tive certeza que ninguém me via fechei as cortinas  tranquei a porta ninguém nunca saberia então fingi que não tinha antes nem depois só eu e sua presença materializada eu falando e dançando com o morto na sala quando enfim você veio buscar os fantasmas de você de volta eu disse que tudo aquilo que você tinha era um monte de lixo que eu deveria ter jogado tudo aquilo fora que você era pobre que era um vagabundo que se trabalhasse de verdade teria alguma coisa que preste não foi só recalque era de fato tudo um monte de lixo mesmo pano puído ferro enferrujado madeira vagabunda descolando e papel amassado era mesmo e eu amava e toda aquela tralha me emocionava muito porque era exatamente do jeitinho que você era um tralha estropiado uma coisa que falta peça  eu respondi que aquilo tudo era do falecido como se um morto estivesse acima dos sentimentos de ciúme ou de ódio e de fato minha relação com tudo aquilo só poderia ter se estabelecido mediante sua morte eu não tive como resistir ao cheiro da sua roupa naqueles dias tão sozinhos  mas  de repente  assim como as coisas de todo morto não costumam permanecer intocáveis um dia meu novo namorado encontrou vazia a sala da minha vida.

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